Há pouco mais de uma semana, uma grande rede de restaurantes fast-food ou a incluir, em suas lojas no Rio de Janeiro e em São Paulo, um livro de colorir do fenômeno “Boobie Goods” entre as suas promoções. O fato em si não chamaria tanta atenção se não fosse mais um exemplo de uma tendência que vem desde a metade da década ada – e voltou a ganhar destaque recentemente – com a disponibilização de materiais voltados para adultos que remetem a atividades infantis.
Criado para inspirar nas pessoas a sensação de conexão e encantamento ao pegarem em papel e caneta, despertando uma sensação de nostalgia nos mais crescidinhos, “Boobie Goods” não está sozinho. Além de tantas coleções que buscam promover uma confortável viagem no tempo aos seus leitores, esse apelo infantil também se vê nos bichinhos Labubu que enfeitam bolsas de marcas caras.
Para Tatiana de Azevedo Camargo, diretora executiva do Museu do Brinquedo, esse mundo lúdico está muito acentuado na infância, mas é uma característica do ser humano. “Por ainda estarem em desenvolvimento a nossa capacidade intelectual e a nossa inserção social e cultural, essa ludicidade é muito presente na infância. À medida que vamos nos inserindo nesses costumes e valores, acabamos deixando de lado”.
“Quando a gente vê adultos com esses hobbies, percebemos uma visão muito genuína de que são adultos revisitando esse lado lúdico, já que faz parte da essência deles. Isso deve ser visto com muita naturalidade, como uma característica saudável e, inclusive, bem-vinda, porque toda a nossa estrutura socioeconômica nos faz entrar em engrenagens de buscas materiais. Esse lado do ser brincante nos aproxima muito mais da nossa humanidade”, avalia.
Para a diretora, o brincar tem mais relação com o ser humano “do que outras opções que a gente faz na vida” e sobre as quais não somos “tão questionados”. Desde quando o museu foi criado, em 2007, ela percebe a transformação dos adultos diante dos brinquedos, não só num esforço de compartilhar e apresentar aos filhos as atividades de infância, mas também numa conexão com eles próprios.
Perceber isso é muito gratificante para Tatiana, que criou o Museu do Brinquedo com esse intuito. “Nosso objetivo é valorizar a conexão da criança com o lúdico, principalmente neste momento em que a tecnologia a tem tirado muito mais cedo da infância dela. E também promovemos essa conexão entre os familiares, já que vemos os pais mais distantes, com pouca intermediação através da brincadeira”.
Ela lamenta que a nossa sociedade tenha se pautado por um mundo em que o “ter” é mais primordial que o “ser”. “O lúdico está na esfera do ser, com os sentimentos, as sensações e as emoções. Até mesmo para não permitir que os adultos abram tanto espaço para isso – porque, se ele brinca mais, vai trabalhar menos –, somos formados para nos tornar adultos mais ‘produtivos’”, critica.
A boa notícia, segundo Tatiana, é que o ser humano está sempre burlando esse enquadramento, principalmente por meio das celebrações. Segundo essa visão, o Carnaval não seria nada mais do que uma grande brincadeira. “Várias manifestações populares são formas brincantes. São respiros, formas de a gente exercer ‘infantilidade’”, explica Tatiana, que, com o museu, segue um legado de família – foi a partir da coleção da avó que surgiu a instituição.
Brincar pode representar falta de maturidade emocional
O neurocientista e hipnoterapeuta Thiago Porto lança outras questões sobre essa tendência. Uma delas é a falta de maturidade emocional. “Apesar de terem idade de adulto, as pessoas têm funções emocionais infantilizadas. Por que elas não amadurecem? Falta de estímulo ou, como costumo chamar, ‘demanda terapêutica’, aquilo que carrega alguma traumatização”, assinala Porto.
“Cronologicamente, todo mundo vai envelhecer, mas amadurecer não. A pessoa pode ter ado por traumatização instalada quando era criança, não conseguindo superá-la, o que impediu o amadurecimento. Quando esses adultos têm a oportunidade de interagir com o bebê reborn, por exemplo, são despertadas emoções da época em que eram uma menina e queriam ou tinham uma boneca”, observa o neurocientista.
A questão do bebê reborn – boneca de arte feita à mão que se assemelha a um bebê humano com o máximo de realismo possível – ganhou o noticiário nos últimos dias, quando, em Belo Horizonte, um bebê no colo recebeu um tapa de uma pessoa, que queria saber se era ou não um neném de verdade. “Se esses bonecos não tivessem o realismo da textura e das características, não despertariam essa questão emocional nos adultos”, afirma Porto.
Normalmente, explica Porto, um adulto não acha graça em brincadeiras infantis porque elas não despertam nenhuma atenção. “Isso tem a ver com a parte mais fantasiosa do sistema nervoso. As crianças têm mais facilidade para fantasiar, e os adultos têm menos essa competência à medida que a gente amadurece, quando a parte cognitiva vai deixando de usar a parte mais lúdica”, comenta.
Ele cita o exemplo dos livros de colorir, que ganharam um valor terapêutico. “As brincadeiras de infância foram construídas sem essa intenção. Um adulto pode brincar de colorir, mas será mais pela expressão terapêutica do que pela graça de ver um desenho ficando colorido”, registra.
Experiência aconchegante
São Paulo. A onda “Bobbie Goods”, com desenhos de ursinhos de colorir que pareciam despretensiosos, tomou tamanha proporção que fez editoras voltarem a investir em obras desse filão. As histórias remetem ao gênero literário “cozy”, popular entre os jovens desde a pandemia, buscando oferecer uma experiência aconchegante e tranquila. Assim, tudo na estética do desenho é pensado para atingir esse conforto: o traçado grosso combinando com espaços mais amplos – mais fáceis de colorir –, a “fofura” na fisionomia das personagens e até mesmo as cenas em que estão inseridas.
O fenômeno “Bobbie Goods” ampliou o público dos livros de colorir ao alcançar jovens adultos, grupo excluído da onda do “Jardim Secreto”, em 2015, que focava ilustrações de jardins e caça ao tesouro. As histórias apostam na criação de um universo único, por meio de enredos e personagens. Entre os mais famosos está a cachorrinha Momo, que conhece os melhores locais para tirar uma soneca. Outro é Pierre, o urso de poucas palavras. (Natália Santos/Folhapress)